Um bom lugar para morrer

Autor: Munnrah

Ficha técnica

Prey (2017)

Data de lançamento: 05 de maio de 2017

Plataformas: Xbox One, PS4, Windows.

Esse é o segundo review do Munnrah para o site, e, apenas por acaso, de mais um jogo com elementos de terror, e uma estação espacial que tem um protagonismo muito grande na história. Confira o outro review, de Alien Isolation com a sua Sevastopol, aqui.

Eu quero deixar claro que qualquer informação nesse review que possa parecer um spoiler já está disponível no site oficial do jogo. Eu conferi.


Rapture. The Commonwealth. Lordran. Liberty City.

Algumas das localizações mais icônicas dos videogames. Lugares vivos, que são tão importantes em seus jogos quanto o fuzileiro espacial careca ou o guerreiro emo japonês de espada gigante.

Não são apenas áreas para explorar e adquirir recursos, coletar 10 peles de ratos gigantes e abandonar logo após. Não são lugares que somente estão lá só para te dar um chão para pisar, e um corredor para matar inimigos, ou o 26º planeta para pousar a sua nave e atirar uns lasers em umas pedras.

“Lugares com personalidade. Com objetivos. Com um rosto, um desejo, uma existência além do personagem jogador.”

São lugares com personalidade. Com objetivos. Com um rosto, um desejo, uma existência além do personagem jogador. Ambientes que merecem ser explorados, destrinchados, conhecidos de canto a canto. Lugares que existem para serem vividos, e que vivem, sem a interferência do jogador. Pode acrescentar mais um nessa lista: Talos I.

“Pode acrescentar mais um nessa lista: Talos I.”

Talos I

A estação espacial Talos I é o cenário onde se passa o mais novo jogo chamado Prey (2017).  Mas, mais que o cenário, mais que Morgan Yu, mais que as criaturas obscuras e misteriosas que a habitam, Talos I é o personagem principal de Prey. Protagonista.

Prey se passa em um mundo de história alternativa (já falei de alguns jogos assim, aqui), onde o presidente Kennedy não morreu, e a corrida espacial entre Rússia e Estados Unidos levou à uma das maiores descobertas da humanidade: a existência de vida alienígena.

O jogo se passa em 2035, mas trata-se de um futuro visto através dos olhos do passado. Uma decoração neo-deco, com muito dourado, muita madeira, e muitos segredos corporativos escondidos a sete chaves.

“Talos I é o pináculo da exploração espacial privada. Uma estação espacial, em órbita da lua, suntuosamente desenhada, luxuosa e com tecnologia de ponta.”

Talos I é o pináculo da exploração espacial privada. Uma estação espacial, em órbita da lua, suntuosamente desenhada, luxuosa e com tecnologia de ponta. Uma criação da Transtar, empresa fundada pelo velho casal Yu.

Luxo. Ciência. Dever. Ganância corporativa. Imoralidade. Os fundamentos que mantém a Talos I funcionando.

Um lugar sem lei, que reúne os maiores cientistas do mundo, todos em busca do conhecimento, a qualquer custo, desde que seja possível o lucro em um momento futuro. Esse é o cenário de Prey. Um cenário que ganha vida, através da soberba construção dos sistemas que dão ao jogo sua personalidade.

Os irmãos Yu

Você é Morgan Yu, um dos filhos dos fundadores da Transtar, e um dos diretores da Talos I, ao lado de seu irmão, Alex Yu, um dos antagonistas do jogo, e um dos personagens com quem o jogador mais tem contato durante toda a história.

Morgan é sino-germânico, e o seu sexo pode ser escolhido no início do jogo pelo jogador. Como um/uma cientista, Morgan Yu é um dos chefes do projeto de desenvolvimento dos Neuromods, o próximo passo da evolução humana.

Morgan Yu/Morgan Yu

“Logo após alguns eventos bastante traumáticos, Morgan se vê diante dos Typhon.”

Logo após alguns eventos bastante traumáticos, Morgan se vê diante dos Typhon. Não uma mera criatura, mas toda uma ecologia alienígena, que aos poucos está tomando conta de Talos I, e fazendo da estação espacial a sua nova casa.

“Prey é um dos poucos jogos de mistério e terror ambientado em um mundo de ficção científica, no melhor estilo The Expanse ou Star Trek: Deep Space 9”

Prey é um dos poucos jogos de mistério e terror ambientado em um mundo de ficção científica, no melhor estilo The Expanse ou Star Trek: Deep Space 9 (aqui, a comparação mais próxima e imediata).

Avançar muito na história do jogo é praticamente impossível sem dar spoilers, mas como alguns entusiastas já devem ter notado, o terror cósmico de H. P. Lovecraft é um dos pontos primários da narrativa do jogo, misturado com uma boa dose de weird science, no melhor estilo de Estranhos Prazeres, Primer, e John Morre no Final.

Trata-se de uma história de suspense, que impulsiona o jogador a descobrir suas respostas. O que aconteceu? Como sobrevivo? O que são os Typhon? As respostas para essas perguntas estão no ambiente, em e-mails, em gravações de áudio entre os funcionários de Talos I.

À conta-gotas, o jogador vai aos poucos descobrindo as respostas, e desvendando o grande mistério de Talos I.

A engine

O jogo foi construído na CryEngine, mas gráficos realmente não é o seu maior forte. Na verdade, não é possível notar vários dos efeitos mais interessantes e exclusivos da famosa engine, sendo que, não fosse a tela de título da engine, ela passaria praticamente despercebido. Digo isso como alguém que jogou muito Crysis. E Crysis 2. E até Ryse.

“a CryEngine permitiu que os desenvolvedores criassem uma bela dança de diversos sistemas e mecânicas, que, interligados, criam a maravilhosa ambientação do jogo.”

Mas, e aí temos um grande MAS, a CryEngine permitiu que os desenvolvedores criassem uma bela dança de diversos sistemas e mecânicas, que, interligados, criam a maravilhosa ambientação do jogo. O primeiro ponto que vale destacar, é a física aplicada em praticamente todos os objetos do jogo (todos que eu tentei interagir, pelo menos).

Uma das poucas armas que você encontra no jogo é o Canhão GLOO. Mais uma ferramenta do que uma arma, o canhão GLOO dispara bolas (cuspes, para ser mais exato), de uma espuma expansiva, que adere a quase todos as superfícies do jogo (tirando o vidro).

“Com o uso do canhão GLOO, praticamente qualquer área da Talos I pode ser acessada a qualquer momento pelo jogador.”

Com o uso do canhão GLOO, praticamente qualquer área da Talos I pode ser acessada a qualquer momento pelo jogador. A espuma serve também para “colar” objetos uns nos outros, serve para apagar áreas em chamas, para impedir correntes elétricas, e para criar plataformas para Morgan.

E o vidro. Ah, o vidro. Como eu me diverti estourando janelas, vitrines e gabinetes nesse jogo. O vidro se comporta de maneira muito realista, se estilhaçando e se espatifando de forma muito satisfatória.

“Em uma versão retrofuturista do famoso conto de fadas, usei os vidros estilhaçados como migalhas de pão, para marcar as áreas e salas que já tinha visitado.”

Não podia ver uma janela quebrável ou outro objeto de vidro sem sacar a chave de cano e marretar o bagulho. Em uma versão retrofuturista do famoso conto de fadas, usei os vidros estilhaçados como migalhas de pão, para marcar as áreas e salas que já tinha visitado.

Os Typhon

Outro elemento possível somente em razão da engine, é o visual dos Typhon. Uma mistura, muito bem animada (muito bem animada MESMO) de modelos, shaders, texturas e de efeitos localizados de blur e de profundidade de campo, criam a feição obscura, misteriosa, e profundamente alienígena das criaturas.

Disse Emmanuel Petit, líder de design visual do jogo, em entrevista ao site Rock Paper Shotgun (aqui em tradução livre):

“Todos os efeitos têm o objetivo de promover o design global dos Typhon como algo, “que faz coisas estranhas”. Os modelos dos monstros são bastante simples, já que por design eles não podem ser muito descritivos, então nós procuramos outras maneiras de deixá-los mais interessantes, adicionando partículas e um shader de desfoque animado.

O shader de deformação de vértices é na verdade algo já incluso na Cryengine, cujo objetivo original é para animar folhagem! […] Além disso, uma forma radical de deixa-los mais visualmente interessantes foi dá-los uma forma para impactar o ambiente em volta deles.”

Impactar o ambiente em volta deles. Sim. Toda vez que o jogador se aproxima de um Typhon, toda a tela se escurece levemente, glitches visuais começam a aparecer, o som ambiente se modifica, bem como todo o restante da estação.

Os Typhon efetivamente danificam a estação, fazendo objetos voarem com seus ataques, coisas explodirem, canos de gás se romperem e entrarem em combustão, gerando labaredas em torno de si mesmos, objetos eletrônicos entrarem em curto. Tudo como uma forma de demonstrar claramente ao jogador a grande ameaça que as criaturas representam.

Elas interagem com o ambiente tanto quanto o próprio protagonista, dominando-o, controlando-o, e causando destruição de maneiras que seriam reservadas apenas ao jogador, em outros jogos sem o mesmo nível de interação e imersão.

Como eu disse no começo, Prey é um jogo montado sobre um conjunto de sistemas interligados, que, ao interagirem um com o outro, criam a sensação de um mundo vivo. E que acabam criando uma das ambientações mais verossímeis dos últimos anos.

O som

Som também é um dos grandes fatores para criar tal ilusão. A maior parte do jogo Morgan estará acompanhada tão somente de som ambiente. Uma grande estação espacial, em pleno funcionamento, momentos após uma catástrofe total.

Então temos sons de maquinário, tratamento de água e esgoto, eletricidade. E dos Typhon, que tem uma identidade sonora própria. A pouca música do jogo acompanha o jogador somente em momentos de batalha, e em alguns pontos chave da história, e remete sempre ao retrofuturismo que todo o visual do jogo mantém.

Toques de 2001: Uma Odisseia no Espaço, com um tanto de Alien, e uma boa dose de sintetizadores montam a ótima trilha sonora original do jogo, em boa parte composta por Mick Gordon, de DOOM e Killer Instinct.

Jogabilidade

O combate em Prey é essencial para a sobrevivência de Morgan Yu, mas nem de longe é o foco do jogo. Prey é um jogo todo construído em volta da exploração livre de um grande ambiente, único, mas limitado.

Nas 25-30 horas de jogo, a Estação Talos I acaba se tornando a casa do jogador. De ambientes hostis e desconhecidos, à palma da mão. Não se trata do famigerado backtracking, mas sim de realmente habitar a estação, destilar suas passagens secretas, túneis de ventilação e manutenção, desbloquear portas e caminhos, e até de reparar dois ou três rasgos em seu casco.

“O domínio dos sistemas do jogo, combinado com uma boa dose de criatividade, já é suficiente para acessar uma boa parte das áreas inicialmente bloqueadas ao jogador.”

Cada área pode ser explorada de diversas formas diferentes. Hacking, reparação, e força são algumas das habilidades que o jogo fornece ao jogador para encontrar novos caminhos no ambiente. Mas eles nem sempre são necessários. O domínio dos sistemas do jogo, combinado com uma boa dose de criatividade, já é suficiente para acessar uma boa parte das áreas inicialmente bloqueadas ao jogador. Saber pular e cair, e saber usar bem o canhão GLOO, libera tantos caminhos quanto Hacking II.

“poucas sensações superam a satisfação de se transformar em uma caneca e rolar por pequenas aberturas em salas anteriormente inacessíveis.”

Além disso, os Neuromods também concedem uma grande gama de poderes, totalmente opcionais, que permitem ao jogador modificar a sua forma de explorar a Talos I. Telecinésia e mimetismo sendo os dois principais deles. Aliás, poucas sensações superam a satisfação de se transformar em uma caneca e rolar por pequenas aberturas em salas anteriormente inacessíveis.

Em um primeiro ponto, o combate do jogo pode parecer um pouco limitado, com apenas cinco ou seis armas, e até mesmo meio “duro”.

Uma pistola, uma escopeta, uma chave de cano, e o canhão GLOO serão o principal arsenal de Morgan durante quase toda a jornada. Mas, como eu já disse, Prey, como System Shock antes dele, não tem o combate como sua principal característica.

“essas poucas armas,  combinadas com os poderes e a criatividade do jogador, acabam tornando o combate em uma luta frenética e desesperada pela sobrevivência, que poucos jogos conseguem igualar.”

Ainda assim, essas poucas armas, novamente combinadas com os poderes fornecidos pelos Neuromods e a criatividade do jogador, acabam tornando o combate em uma luta frenética e desesperada pela sobrevivência, que poucos jogos conseguem igualar.

Acabei falando bastante dos poderes dos Neuromods, mas tenho que me retratar brevemente. Prey é um jogo fundamentado na liberdade.

Assim, de três árvores de evolução de Neuromods, com mais ou menos dez perícias e três níveis cada, eu comprei, nas minhas 30 horas de jogo, exatamente 2 perícias de Neuromods, as duas somente em seu primeiro nível de evolução. Por escolha própria, que fique claro, não por falta de pontos de evolução ou qualquer outro motivo.

“a estação Talos I também é povoada por um pequeno, mas muito divertido, grupo de robôs, médicos, cientistas e engenheiros.”

Mas sim, porque a estação Talos I também é povoada por um pequeno, mas muito divertido, grupo de robôs, chamados Operadores.

Nas modalidades médicos, cientistas e engenheiros, esses robôs mantém a estação funcionando, mesmo sem a presença humana, mas também te fornecem cura e reparos, por exemplo.

Só que, quanto mais Neuromods instalados, mais a própria estação deixa de te reconhecer, sendo que, como um vírus, a própria Talos I se volta contra você, impedindo que os operadores te curem, e fazendo com que as medidas de segurança se voltem contra Morgan Yu.

Além disso, um dos Typhon mais difíceis do jogo, chamado Tecnopata, pode assumir o controle dos pobres robozinhos, que podem se tornar poderosos inimigos.

A principal comparação que pode ser feita é entre Prey e seus Neuromods, com Bioshock e os Plasmid. Mas Prey foi construído tendo como modelo um jogo bem mais antigo: System Shock.

Joguei o game dublado, da mesma forma que Shadow of Mordor, por exemplo. Do jogo de fantasia medieval, eu e minha esposa restamos com a frase “o que são essas torres de prata?”, proferida pelo guardião Talion a cada ressureição. De Prey, ficamos com “não posso fazer mais nada por você, a não ser que goste de curiosidades médicas… ou piadas”, proferidas pelos operadores médicos do jogo sempre que você conversa com eles com a vida cheia. E “passando”, dos operadores engenheiros.

Veredito

Não se trata de Prey 2, o jogo cujo desenvolvimento foi abandonado. Nem de Prey (2006), o jogo sobre a invasão alienígena que é vencida por um índio com poderes espirituais. Prey (2017) é, na verdade, muito mais que isso.

Tensão. Ambientação. Liberdade.

Prey é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores jogos de 2017.